Nossos hábitos urbanos nos arrastam para um desenraizamento pleno dos ciclos de vida que foram tão arduamente aprendidos e desenvolvidos pelas gerações que se sucederam pelo menos até o início do século XX. Penso, por exemplo, na simples identificação de plantas alimentícias numa área de mato ou em como lidar com resíduos orgânicos sem depender de um sistema de coleta. O mais importante é voltarmos as origens e reaprender o ciclo novamente.
O fato de esses conteúdos serem largamente de transmissão oral e aprendidos pela observação e experiência gera em nós certo estranhamento, e temos dificuldade de, se quiséssemos, nos re-enraizarmos.
Evidentemente, esse processo não é completamente homogêneo. Existem focos de permanência de outras existências possíveis. Um desses focos são os povos e as comunidades (que nomeamos de) tradicionais.
Hoje pensando, considero chocante que, na primeira vez em que fui a uma aldeia mbya guarani, nos idos de 2013, tenha ficado surpreso com o fato de ninguém ser fluente na língua portuguesa – muitos, inclusive, se expressavam apenas em mbya. Tal é a força da homogeneização a que nos submetemos: a diversidade linguística no país é uma das maiores do mundo, mas pouco conhecemos a respeito disso. Ou então a enquadramos num panorama de exotização, jogando-a para a Amazônia, e não achamos possível associá-la à periferia de Porto Alegre – no caso, a Aldeia Anhetenguá, na Lomba do Pinheiro.
Foi justamente essa diversidade que Natalia Henkin e eu buscamos retratar na reportagem Biodiversidade pela lógica do envolvimento [link: https://issuu.com/jornaldauniversidade/docs/ju_219_dezembro_2018], publicada em dezembro no Jornal da Universidade [link: https://issuu.com/jornaldauniversidade]. Acima de tudo, tratamos de desenvolver aí a seguinte questão:
Segundo o etnoarqueólogo José Catafesto, professor da UFRGS, a lógica indígena é de envolvimento com a natureza (daí o título da matéria), enquanto os hábitos urbanos do capitalismo ocidental é de distanciamento da natureza: “A palavra desenvolvimento demonstra bem a maneira como nós concebemos a forma de estar no planeta: desenvolvimento é sair, é tirar do envolvimento. As sociedades indígenas jamais se propuseram a isso, pelo contrário”.
Felipe Brizoela, cacique mbya guarani da aldeia Pindoty, no município de Riozinho, reforça: “A natureza faz parte da vida espiritual guarani. A preservação é importante para nós por conta da ligação espiritual”.
Foi a partir da minha ida a essa aldeia que a reportagem começou a tomar forma. Estive no Nhemboaty, um encontro de lideranças das aldeias mbya do litoral Norte do RS.
Neste encontro foi instituído o conselho de saúde indígena para a região.
Nessa interação, o que mais me marcou foi o dilema em que as comunidades se encontram:
Em primeiro lugar, desejam que seu modo de vida seja conhecido na esperança de que venha a ser respeitado pelos juruá (não indígenas);
Mas, receiam que o conhecimento, em vez de reconhecimento, traga mais destruição.
Nesse sentido, é preciso reconhecer que o Estado brasileiro continua a política etnocida iniciada no período colonial.
Esse receio é marcante em trechos da fala do cacique Felipe, presidente do conselho. Ao se dirigir à equipe de saúde indígena do estado, ele diz: “Vocês não precisam saber da nossa cultura”. Ou ainda: “Queremos deixar a comunidade bem isolada”.
Em suma, a incerteza que ronda as populações indígenas com o governo que toma posse em Brasília é ameaçadora. Por outro lado, é abismal a capacidade de resistência desses povos que já somam mais de 500 anos de enfrentamentos e seguem firmes e serenos longe dos novos hábitos urbanos.
Autor:
Felipe Ewald, jornalista da UFRGS
Este site usa cookies.
Saiba mais ...